quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Contraponto (2)

Foi postada no Facebook uma carta aberta de autoria de ANDRÉ PAES LEME, em resposta à minha. Resolvi publicá-lo em destaque porque é muito bem articulado, e toca em aspectos fundamentais da questão.

O post imediatamente posterior contém a minha resposta. 

Discordo de TUDO que o  André está dizendo, conforme vocês verão. Mas não posso deixar de reconhecer a qualidade de seu texto e, acima de tudo, a coragem e honestidade intelectual que estão por trás de sua tecetura.


“Por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, até mesmo um comportamento assumido no exercício de um direito [DE GREVE] deve, sob determinadas circunstâncias, ser considerado [pelo Estado] uma violência.” (Walter Benjamin)

É assim que Benjamin caracteriza o exercício do direito de greve, concedido pelo Estado, porém caracterizado como arbitrário e violento, quando, por assim dizer, GENERALIZA-SE. O ensaio do autor ressalta o caráter transitório sobre o qual repousa qualquer direito que, em ato, possa vir a confrontar o ordenamento de direito que o promulga. Geralmente, nesses casos, o Estado - e seus apologetas - o classificam como VIOLÊNCIA. O contexto analisado por Benjamin remete à greve operária. Acreditamos, porém, que seus conceitos possam oferecer alguma luz para melhor visualizarmos situações tais como as greves estudantis.

Trata-se aqui de discutir algumas das implicações dessa caracterização feita por Benjamin no âmbito estrito da greve em curso dos estudantes da USP, mais especificamente, dos estudantes de FILOSOFIA. Propomos então uma reflexão sobre os últimos episódios ocorridos no depto. e as reações que acabaram desencadeando.

O professor João Vergílio acusa os estudantes de filosofia, em greve, de se utilizarem de violência, ou melhor, de um certo “cálculo” da violência, para interromperem suas aulas. Para isso, baseia-se no direito constituído que o garante ministrá-las e, aos demais estudantes, assisti-las. Diz ele: “Um professor ou aluno que entra em sala de aula contrariando decisões de uma assembleia [...] Sente que está simplesmente exercendo seu direito de ir e vir, pois não atribui nenhum valor às decisões tomadas pelos colegas.” É uma pena não haver espaço
aqui para analisar, com o necessário cuidado, a tendência notoriamente presente nos setores conservadores mais ligeiros, dos quais boa parte dos editoriais de mídia impressa e os programas televisivos de temática policial são um exemplo flagrante, de utilizarem-se do direito constitucional de ir e vir para operar a desqualificação de todo tipo de conflito social que se faça visível por meio de manifestações, passeatas, greves, etc... Mas, para além disso, já que o Profº raciocina no sentido de legitimar a ocorrência de suas aulas a partir do princípio da legalidade que defenderia tanto quem as ministra quanto quem as assiste, talvez fosse o caso de nos perguntarmos a que violência ele se refere. Segundo Freud: "É um erro de cálculo [seria esse o cálculo que o Profº nos atribui?] não considerar que o direito em sua origem foi VIOLÊNCIA BRUTA e que ainda hoje não pode prescindir do apoio da VIOLÊNCIA."

Isso significa que há uma permanente tensão que perpassa todo e qualquer ordenamento jurídico, isto é, a tensão entre direito e justiça. A ideia de justiça nunca se esgota em suas representações jurídicas e nas instituições de direito que a ela buscam se ajustar. Não pretendemos com essa constatação, no entanto, estabelecer um relativismo que autorize o uso indiscriminado da violência (de qualquer espécie), o que seria insensato. Reconhecemos que é impensável uma ideia de justiça que não incorra em um direito, em um estabelecimento da legalidade, em larga medida, que não se mova a partir de um Estado constituído. Mas não podemos deixar também de reconhecer, juntos de Jacques Derrida, por exemplo, que “aquilo que pretende ter força de lei inscreve, portanto, o apelo à força no próprio conceito de sua autoridade. O risco de tirania não espera mais, ele espreita na origem da lei”. Assim, pretendemos mostrar que, a contrapelo do que sustenta o profº João Vergílio, em sua enxurrada de textos dos últimos dias, a interrupção de aulas não
é um ato que caiba na oposição Violência X Direito (oposição largamente problemática), pois tratam-se ambos, grosso modo, de momentos distintos de um mesmo ato, sendo a violência a porta pela qual o direito se instala e, mais tarde, a arma pela qual ele se defende. Podemos inferir que a própria estrutura da sala de aula, amparada pela legalidade do direito, é um dos espaços, por excelência, para a ação livre da VIOLÊNCIA SIMBÓLICA imposta pela ordem constituída. A violência que constitui o direito persiste, mas de maneira velada. No correr de uma relação pedagógica professor e aluno podem não ser diretamente violentados por atos ou palavras, mas o background, os valores impressos no aprendizado e a primazia discursiva são de quem? A relação exercida é sim uma relação de poder em que o mais forte se impõe sobre o mais fraco, através de uma forma de violência, que, por não ser problematizada, cristaliza-se como um dado, um fato inevitável. Daí decorre que se afirme, contra um cadeiraço, que a sala de aula é o “lugar natural” das carteiras, ou que o “conhecimento” se cale na ausência de aulas. Concordamos que a sala de aula é sim o espaço das carteiras, mas a própria diagramação espacial dela é fruto de uma violência simbólica, ao menos, tanto quanto o ato de retirá-las da sala.

Gostaria também de ressaltar que as “ações grevistas” dos estudantes de Filosofia foram pautadas desde o início pelo diálogo e o respeito a professores e estudantes de posições contrárias e/ou indiferentes à greve. Assim, apenas ontem fora utilizado o cadeiraço como forma de interrupção das aulas (Um erro na opinião de quem aqui escreve, mas tem a clara percepção de que condená-lo a partir da exaltação do direito incorre em uma forma cínica de “fazer cumprir a lei”, a despeito da natureza política do conflito). Nossos piquetes tem
sido pautados pelo diálogo e pelo respeito a posição de professores e demais estudantes.

Trata-se da entrada (e não invasão, como diz o Profº João Vergílio) de um pequeno grupo de alunos em sala de aula, para a proposição de um debate sobre a situação política enfrentada pela universidade e para que seja reforçado o informe de que a Assembleia dos Estudantes de Filosofia deliberou por greve. Foi apenas isso o que ocorreu na aula de 21/11 e que tanto indignou o Profº João Vergílio. Talvez, tendo se sentido ameaçado pela ruptura do monopólio discursivo, prerrogativa sua em sala de aula, o Profº tenha se sentido vítima do que denominou: “uma violência mínima”. Cremos que haja uma diferença qualitativa entre um chamado ao debate, ou seja, o que foi feito durante a aula de 21/11 e a prática de cadeiraços e demais piquetes, que, apesar de válidos, são utilizados apenas quando se configura a impossiblidade de se levar adiante a discussão por conta de uma recusa docente, a qual, como sabemos, tem sim natureza política. Ainda que ambos (“discussão” e “piquete”) tenham a finalidade de interromper a atividade (aula) em curso, no primeiro caso, salta aos olhos um convite ao livre pensar, à reflexão para além das paredes da sala de aula, um verdadeiro convite à própria filosofia. O fato de o Profº João Vergílio ter se retirado bastante irritado, talvez mostre que, para ele, a filosofia tenha de contar sempre com a mediação das salas de aula para exercer seu papel crítico frente a realidade, não apenas da universidade, mas do mundo.

Dessa feita, se alguma violência fora cometida em sua aula, no dia 21/11, coisa com a qual não assentimos, fora aquela que Gilles Deleuze denominou, em um outro contexto, a violência do pensamento, isto é, o acontecimento que força a PENSAR. 

No que concerne aos ataques, a nosso ver, preconceituosos e ideologicamente inclinados que o Profº desfere contra as assembleias, na ausência de espaços melhores e mais eficazes, o local de deliberação soberana dos estudantes de filosofia, só nos resta lamentar que, ao invés de comparecerem a elas e comprovarem como são um espaço aberto às mais diversas opiniões e tendências políticas, haja não apenas estudantes, mas professores que prefiram alimentar preconceitos de tal ordem. Rechaçamos a “incitação lúdica” que o Profº João Vergílio vem realizando em seus textos ao boicote às assembleias em geral, não apenas pela vileza que domina essa atitude, que visa, no limite, o esvaziamento dos poucos canais institucionais de discussão discente atualmente disponíveis, mas, sobretudo, pela irracionalidade do argumento. Haja vista que não faria o menor sentido trabalhar pelo impedimento de uma assembleia de curso que se encontra aberta para acatar a posição de todos (que o Profº prove não ser esse o caso da Assembleia dos Estudantes de Filosofia), inclusive dos que são contrários ao seu estabelecimento. Por outro lado, a nosso ver, trata-se de uma discussão delicada e importante a revisão de certos modelos de deliberação conjunta. Recebemos com atenção as indicações fornecidas pelo Profº a respeito da ampliação da possiblidade de discussão e voto, através da utilização de novos meios de interação, como a Internet. Acreditamos que essa discussão deva estar na ordem do dia do Movimento Estudantil para que ele se torne mais legítimo a cada dia. Não concordamos, contudo, que o modelo de assembleia atual incorra, no mais das vezes, em “pura manipulação ideológica”, como foi dito. Pelo contrário, ressaltamos que as deliberações de uma assembleia, como a dos estudantes de filosofia, cujo caráter é de DEMOCRACIA DIRETA E PARTICIPATIVA merece respeito mesmo da parte daqueles que, por princípio, a recusam. No mais, reforçamos o convite a todos os estudantes que, apesar de nunca terem frequentado as assembleias, afirmam não se sentirem representados pelas deliberações conjuntas, para que compareçam e colaborem na discussão sobre a greve que se encontra em curso e sobre os próximos passos do movimento, sobretudo, para o o fortalecimento de um debate acerca da remodelação das instâncias decisórias.

Pausa

Passarei o dia trancado num congresso. Novos posts, só à noite. Até lá.

Da série "A Imaginação no Poder"

Um baile de iê-iê-iê no espaço dos estudantes. A caráter. Em homenagem aos atuais ocupantes.



terça-feira, 29 de novembro de 2011

Contraponto

Nosso colega Flávio Pereira mandou-nos uma defesa articulada da posição daqueles que apóiam a greve. Achei interessante publicá-la como post, sem fazer alteração nenhuma no texto original. É importante termos acesso simultâneo aos dois pontos de vista, para compará-los. 

O cadeiraço simboliza que as aulas não se restringem as salas, mas fora dela onde ocorrem fatos correlatos com a sala de aula. Então, nesse momento do cadeiraço, a aula ocorre em outro lugar e com outro tema. O tema é o que é publico e privado na universidade? Por que o reitor escolheu a PM e não outras medidas? Por que o Conselho Universitário tem essa organização? Podemos mudar essa organização? O que é republicanismo? O que é democracia? Esses são alguns dos novos temas.

No entanto, frente a essas questões e outras que ultrapassam a universidade, a maioria silenciosa não age, não vai na assembleia, não faz nada além de ir as aulas. Só a aula. É isso que importa. Quando os alunos mobilizados agem em desacordo com esse cotidiano, então, eles falam e gritam por todos os lados que seus direitos estão sendo violados por esses alunos. Porém, essa maioria esquece como os seus queridos direitos foram conquistados. Foi com muita luta e essa luta atrapalhou muita gente. Além disso, a greve de 2007 garantiu professores para essa maioria silenciosa ter aula hoje. E essa greve também incomodou demais a maioria silenciosa. O que a maioria silenciosa quer? Quer direito sem lutar? Há na história uma mobilização por direitos feita por petição eletrônica? São a regra ou a exceção? 

Então, questiono-me: por exemplo, se identifico o problema da falta de professores e faço uma greve em cima desse problema. Se eu ganhar a luta, teremos professores. Além do mais, não será eu o único a assistir à aula. Não farei uma lista de quem pode assistir às aulas baseado nas suas ações políticas do passado. Se quiser, é só assistir à aula. Isso não justificaria meus atos políticos?Por quê? Será porque incomodo a maioria, mas ela desfrutará dos ganhos da luta. Por favor, não coloquem aqui aquela ideia: “então pode matar!” Pois, essa atitude é rara na ação política estudantil. Bater em professor, agredir aluno é exceção. Quem faz isso é um idiota.

Nesse quadro, a maioria sinaliza para a reitoria fazer o que quiser, pois, não aquela fará nada. Pode privatizar a universidade, pois ela já estudou nela mesmo. Já fez a pós-graduação e tudo que tinha direito. E os outros cidadãos? Se eles não tiverem como pagar, não estudaram? Essa maioria não estaria restringindo o direito dos outros estudarem numa universidade pública? Isso não é cadeiraço simbólico na vida dos nossos concidadãos? 

Quando posso agir? Posso agir em vista do interesse particular, interesse corporativista ou interesse público? 

Da série "Se eles podem, eu também posso"

Intervir "fisicamente" no momento das votações em assembléias com apitos, buzinas e gritos de guerra. Não permitir que as propostas sejam lidas. Jamais se importar nessa hora com o fato de ser minoria no ambiente. O importante é estar certo.

Método também conhecido como "tome lá uma colherada do xarope que você me deu".

Mitologias. (3) O cadeiraço.

Engana-se quem pensa que as carteiras empilhadas nos corredores estejam apenas desempenhando uma função de ordem prática. Não foram postas ali apenas para inviabilizar fisicamente aulas que, não fosse por esse tipo de violência, estariam acontecendo normalmente. Elas têm um caráter simbólico. Têm que ser lidas, e lidas em voz alta, pois, em sua linguagem silenciosa, estão o tempo todo dirigindo-se aos passantes, sem que ninguém as conteste. 

É preciso ouvi-las. E dar-lhes a devida resposta.

Deslocadas de seu lugar natural, apontam insistentemente para a sala de aula. É sobre ela que estão falando.  É dela que apresentam, exiladas, um retrato negativo: o que a sala já não tem, o que a sala já não pode, o que a sala já não é. 

Espremendo-se, claustrofóbicas, elas nos contam de um espaço finalmente oco, finalmente livre, onde o ar já pode enfim circular. Uma sala renovada pelo vazio, pronta para um novo uso. Ou, menos que isso: pronta para não ter  uso nenhum. A Universidade, agora, é aqui. Visitas à velha senhora, só mesmo pelo postigo. Suspeita. Louca. Prisioneira. 

De pernas para o ar, elas dizem que um mundo antigo ruiu. Não foi desastre natural, logo se vê. Foi gesto humano. Cada carteira traz consigo a sombra da vontade que a dirigiu, do braço que a carregou. Uma ordem se impôs pela força, e exige nosso respeito. O mesmo braço continua disponível nas redondezas. A mesma vontade continua pulsando por toda parte. 

De pernas para o ar, atestam a própria morte. Às centenas, como insetos. "Os que vão viver te saúdam." 

Embaralhadas, anárquicas, vão dizendo ao visitante que uma nova ordem se instalou. Procure onde não houver fileiras. Procure onde não houver lugares determinados. Procure onde não houver oposição entre quem ensina e quem aprende. (Ah, essa arte de mentir melifluamente... Com o tacape sempre à mão, é claro. Sacumé... Just in case.)

"Uma subversão apenas temporária", disse um colega. Que o seja. Mas o que esta cena temporária está nos dizendo, afinal? Que, quando a política chega, o conhecimento se cala. Que, quando a palavra não chega, a força bruta é quem fala. 

É essa lógica perversa que está por trás da farsa das votações em assembléia, dos piquetes, das pequenas violências consentidas em nome de um ideal maior. Talvez exibida assim, sem maquilagem, essa mitologia ainda conserve algum poder de encantamento. As pessoas que se encantam com ela, no entanto, devem deixar de ser hipócritas e reconhecer que, ao fim e ao cabo, o brucutu que atacou o professor Marcelo Barra não estava fazendo outra coisa senão levar às últimas conseqüências os princípios que elas mesmas inscrevem em cada um dos símbolos que espalham pelo mundo.  


Depois, quando a polícia chega, fazem carinha de dodói. Tá bom, santa!

Corolários da violência mínima

Minha total solidariedade ao professor Marcelo Barra, agredido físicamente ontem no prédio da Letras por um brucutu que deveria estar dentro de uma jaula, e não na Universidade de São Paulo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Da série "A Imaginação no Poder"

Uma invasão do prédio da UNE, no Rio de Janeiro, impedindo a diretoria de entrar nele.

Trailer

Por que a política não pode se ACRESCENTAR às aulas? Porque tem que tomar o lugar delas? Que sentido tem esse ritual de anular o espaço acadêmico para que o espaço político surja em seu lugar? Por que essa simbologia é tão forte para todos nós?

No post de amanhã, vamos pensar juntos a respeito dessas questões.

Mitologias. (2) A polícia.

     Os fatos são o de menos neste imbroglio todo, pois é no nível dos sonhos que a verdadeira narrativa se articula. Tendo em vista superá-las, registrarei brevemente duas considerações fatuais antagônicas, para depois passar ao antagonismo imaginário, que realmente importa.

     Pour. O campus é imenso, mal iluminado, cheio de esconderijos naturais e rotas de fuga seguras. Prato cheio para bandidos. A Guarda Universitária não tem poder dissuasório, pois não anda armada. Não tem nenhuma capacidade de ação imediata. Pode, no máximo, chamar a polícia (coisa que, convenhamos, eu ou você também poderíamos fazer). Ninguém duvida da necessidade de se iluminar melhor o campus. Duvida-se da suficiência dessa medida. Mesmo que o campus fosse tão bem iluminado quanto um estádio de futebol, continuaria imenso, cheio de esconderijos naturais e rotas seguras de fuga -  um prato cheio para bandidos.

     Contre. A PM é truculenta e mal treinada. Ao invés de resolver o problema de segurança no campus, ela cria um problema novo, conforme vimos no episódio que desencadeou esta revolta. Que critérios serão utilizados para decidir quem será submetido à humilhação de uma revista? Buscarão, entre os alunos, feições esteriotipadamente associadas àquelas que eles enfrentam em combates de rua? Quem nos garante que o policiamento ostensivo não será simplesmente  a ocasião para pequenas (e grandes) vinganças?

     Não é que eu não tenha lado neste debate fatual. Tenho. Acredito poder demolir cada uma das considerações contrárias à presença da PM no campus lembrando que todas elas serviriam igualmente bem para combater a presença da PM em qualquer outro lugar da cidade. Se a PM tem falhas (e tem), elas certamente não serão resolvidas mediante sua exclusão do campus da USP. Ou meu oponente aceita ir até o fim, e luta pela imediata extinção de todas forças de segurança, ou fica a me dever um argumento provando que o campus é um lugar "especial" em algum sentido, por algum motivo. 

     Acontece, porém, que existe uma outra PM, cuja finalidade não é propriamente combater criminosos, mas sim forjar identidades. A necessidade é visível a olho nu, boiando na superfície dos fatos. 

     O cartaz à frente da passeata na av. Paulista, por exemplo, mencionava 73 "presos políticos". Um deles, escarrapachado num banco do ônibus que conduzia os "heróis da resistência" à delegacia, posou para a foto fazendo o vê da vitória. Macaqueava o gesto de um preso da ditadura militar no momento do embarque para o exílio. Houve relatos de tortura. Uma aluna teria sido molestada sexualmente por vários soldados. Um aluno exibia um dedo machucado. Acho que vi um hematoma nas costas de alguém - posso estar enganado.

     Sem a PM, essa encenação identitária não estaria completa. É necessário, por isso, desconfiar de palavras de ordem como "Fora, PM!". Bem ouvidas, elas podem significar exatamente o contrário do que estão dizendo. "Venha, PM! Precisamos de vocês! Precisamos desse confronto! Precisamos dessa identidade!" Era fácil ouvir esse chamamento durante toda a passeata pela avenida Paulista. Era fácil perceber a frustração geral diante da passividade absurda daqueles policiais. "Bando de bundões..."

     É fácil rir dessa busca de identidade num passado que eles não viveram, mas tentam trazer de volta ao tempo por meio de rituais incompreensíveis para o cidadão comum. (Minha avó, que não bebia, pondo o vinho na mesa para atrair o espírito do falecido esposo.) Mais difícil e mais necessário, porém, é compreender a inquietação que está por trás dessas manifestações canhestras - uma inquietação que tem, a meu ver, uma dimensão perfeitamente legítima, que está latente em cada um de nós.

     Vejam o que acontece na Grécia, por exemplo. Haverá eleições formalmente livres e democráticas daqui a algumas semanas. Os dois principais partidos, no entanto, comprometeram-se previamente com a manutenção do plano de "recuperação" do país elaborado pelas principais potências da Europa. Ou seja, o principal tema da vida nacional já está decidido , independentemente do que disserem as urnas. O eleitor será chamado única e exclusivamente para escolher quem irá implementar o arrocho - quem será, enfim, o Judas de plantão no próximo Sábado de Aleluia. Vejam o que acontece em Portugal. Vejam o que acontece na Espanha. Vejam o que acontecerá na Itália, assim que os italianos perceberem que os contrastes entre o atual primeiro-ministro e Berlusconi esgotam-se no nível das boas maneiras. Vejam o que acontece nos EUA, que elegeram a mudança para conviver com a mesmidade. A democracia representativa se esgotou, colonizada pelo capital financeiro, e passa por uma gigantesca crise de legitimidade. As pessoas saem às ruas para enfrentar a polícia porque sentem que estão sozinhas. E estão, mesmo. No que depender de seus representantes, elas podem ir à breca. Não são os eleitores, afinal, que financiam campanhas eleitorais e distribuem propinas. São os bancos e as grandes empresas.

     Para quem assiste a tudo isso do Brasil, a sensação é um pouco enlouquecedora, porque o país vai bem demais, obrigado. Ninguém está tendo sua aposentadoria cortada, o nível de emprego e de salário, se não é bom, está muito melhor do que já foi e parece melhorar a cada dia. Para "piorar" as coisas, a esquerda está no poder, e não há perspectiva de que saia de lá se não for tangida por uma crise. Vai-se reclamar de quê? Junto com quem?

     É nesse contexto que surge o movimento estudantil da USP, como se fosse um ator em busca de um personagem. Na ausência de inimigos compartilhados com o resto da sociedade, fecharam-se no interior dos muros e problemas da Universidade, como se não existisse vida do outro lado do rio Pinheiros. Elegeram um inimigo imaginário (a PM, minha Virgem Santa... A PM!!!), exumaram mitos, rituais e costumes de 40 anos atrás e passaram a protagonizar espetáculos patéticos como aquela marcha pela Avenida Paulista, no horário de pico, pedindo a libertação de "presos políticos". A faxineira chegou espumando de raiva no dia seguinte. Quase uma hora em pé num ônibus parado, depois de ter, imagine o senhor, trabalhado que nem burro de carga o dia todo. "Seus alunos não têm mais o que fazer, não?"

     Para variar um pouquinho, estamos mimetizando a forma daquilo que nos chega de fora, sem nos importarmos com a inserção que isso tem em nosso contexto. É a nossa velha incapacidade de olharmos para o espelho, ao invés de ficarmos babando em cima de um cartão postal. 

     Ou essa moçada desce do sonho e troca essa revolta em miúdos, ou é melhor mesmo que acendam um baseado e fiquem curtindo sua viagem em paz.

domingo, 27 de novembro de 2011

Não falam, mas percebem

O blog teve mais de 500 acessos no primeiro dia, mais de 600 no segundo, e agora, 15:25 de um domingo, já conta mais de 300 visitas.

Vão me dizer que o problema não é real? 


Da série "A Imaginação no Poder"

E se, ao invés de paralisar as aulas durante a semana ou a Avenida Paulista no horário de pico, estudantes e professores invadissem a Praça da Sé num domingo pela manhã para uma série de aulas simultâneas ao ar livre?

Mitologias. (1) A escolha do reitor.

     Já fui contra eleições diretas para Reitor. O cerne do argumento que eu herdei era o seguinte. O Reitor não deve ser visto como um representante de alunos, funcionários e professores - ele não é uma espécie de chefe supremo das associações de categoria, costurando pelo alto as representações parciais da Adusp, da Asusp e do DCE. Ele é gestor de um órgão público e, enquanto tal, deve satisfações antes de mais nada ao contribuinte, que paga as contas da Universidade. É justo, portanto, que o Governador, que representa a população, tenha a última palavra nessa escolha.

     Do outro lado dessa oposição pré-existente, que delimita rigidamente os termos do debate, temos os argumentos pela "autonomia universitária". A Universidade não deve ser vista como  extensão do Estado, prestando obediência ao governante de plantão. Ela só pode cumprir bem o seu papel se for autônoma. Só assim ela será capaz de justificar o investimento feito nela com dinheiro do contribuinte. O Governador não tem nada que meter o bedelho, portanto, nos assuntos internos da Universidade de São Paulo, a começar pela escolha de seu dirigente máximo. Ele deve ser eleito diretamente por alunos, funcionários e professores.

     Contra o pano de fundo desta antinomia, duas representações simbólicas da universidade se definem. 

      A primeira está impregnada pela idéia de Empresa. A universidade deve ser "gerida" de forma eficiente, pois recebe "recursos" da sociedade e deve lhe dar em troca determinados "bens" e "serviços".

    A segunda está impregnada pela idéia de Estado. A universidade deve ser "governada" por um "representante" eleito com o auxílio de uma espécie de parlamento (o Conselho Universitário), e deve ser "autônoma" em suas relações com o Estado mais ou menos como o próprio Estado é autônomo em suas decisões. 

     Duas metáforas involuntárias, como se vê. Não são conclusões de um raciocínio, mas o lugar no interior do qual os raciocínios são construídos. São duas figuras (eu quase diria - "dois ídolos") sobre as quais projetamos toda a carga emocional associada nos últimos trinta anos à oposição entre Empresa e Estado. Mais ou menos como alguém poderia odiar uma pessoa que se tornasse o símbolo de seu próprio pai. Um caso para psicanalistas.

     Essas idolatrias mutuamente incompatíveis nos condenam a uma visão originariamente parcial e a um diálogo de surdos. Cada participante do debate está falando de seu próprio ídolo. 

     O diálogo só terá início quando abdicarmos dessa simbologia redutora e emocionalmente explosiva. Nossa primeira tarefa, portanto, é implodir essa mitologia, para que a universidade-instituição (e não a universidade-símbolo) comece a ser discutida.

                                            
     Alguns esboços para discussões futuras:

     1. É indiscutível que o sistema vigente para eleição do reitor é completamente absurdo. Se a escolha fosse feita num jogo de bingo, ela seria mais racional. Rodas é provavelmente o último reitor "eleito" por lista tríplice. Uma nova "eleição" conduzida nos mesmos moldes transformaria a USP numa praça de guerra.

    2. Nunca, em nenhum momento, depois do processo de redemocratização, a autonomia de pesquisa e docência da Universidade foi ferida. O docente que disser o contrário disso está mentindo. Na Universidade de São Paulo, cada docente ensina o que quer, pesquisa como acha melhor, e se financia junto às agências de forma absolutamente autônoma. O sistema (repito - absurdo) de escolha do reitor não tem absolutamente nada a ver com a autonomia de pesquisa e docência. 

    3. Uma universidade (principalmente quando ela possui o tamanho da USP) tem, sim, que ser gerida, e bem. Nenhum dos professores que ocuparam a Reitoria até hoje teria competência para gerir uma padaria. Não foram treinados para isso. Não têm a vocação nem o conhecimento necessários para tanto. Isso não mudaria com as eleições diretas. O sistema de escolha do reitor não tem absolutamente nada a ver com capacidade de gestão de orçamentos bilionários e burocracias gigantescas. 

    4. É preciso separar a gestão administrativa da gestão acadêmica da Universidade. A primeira deve ser entregue a gestores profissionais com experiência no ramo. A segunda, a um Conselho Universitário composto apenas por professores, mas eleito pela comunidade (com pesos diferentes para cada categoria). O reitor seria apenas o presidente desse Conselho. 

sábado, 26 de novembro de 2011

Saudade: torrente de paixão

     É paradoxal que um professor diga isso, eu sei, mas debates presenciais têm a capacidade de me deixar catatônico. Não fosse pela taquicardia, pelo suor frio e pelo mais completo e absoluto terror, a sensação poderia muito bem ser a do Nirvana. Meu pensamento fica flutuando num vazio sem limites. Abandonada na superfície de uma semântica liquefeita, a sintaxe logo vai a pique, e a memória vira um depósito de ferro-velho, onde tento em vão encontrar aquele pedacinho de raciocínio que fiquei repetindo para mim mesmo desde o começo do debate. Um inferno.

     Por outro lado, adoro assistir a debates. Acho que tenho em relação a eles o mesmo sentimento um pouco mesquinho daquele fracote que não perde uma só luta da UFC. Sempre tive uma admiração irrestrita por quem sabe pelejar assim - olho no olho - em busca da aprovação da arquibancada. Não me refiro nem mesmo à maestria dos que acrescentaram uma técnica apurada aos dons que já carregavam consigo. Eu me contentaria com bem menos. Quem me dera, por exemplo, ser capaz de levantar uma questão de ordem numa assembléia de professores! Ou, ainda menos - uma insignificante questão de esclarecimento. "Gostaria de saber, senhor presidente, se já estamos em regime de votação." Ah, que delícia! Falar isso com perfeita naturalidade, sem ficar prestando atenção ao som da própria voz, e sem ler nas expressões circundantes gargalhadas prester a explodir na minha cara - falar, simplesmente, como quem pede um refrigerante ao garçom. 

     Mas, não reclamo. Aqui, atrás do meu teclado, consigo me virar mais ou menos bem. Às vezes, acerto a mão. Às vezes, erro. Mas, pelo menos, consigo entrar no jogo. Dizer o que penso. Controlar o que sinto. Dar às minhas palavras a entonação que eu desejo que elas tenham. Estruturar meu pensamento numa direção determinada. Consigo, enfim, contribuir para um debate a que, de outro modo, eu estaria condenado a simplesmente assistir. 

     Nada contra, eu repito, discussões presenciais. Nada contra discussões em geral - em bares, salas de aula, auditórios lotados, cozinhas, quartos, varandas, pelo telefone, pelo twitter, por e-mail, como quer que seja. Quanto mais discussões, melhor. Darei palpite numas, assistirei a outras, como todo mundo. Que todas as discussões sejam feitas, pois a Universidade de São Paulo precisa de discussão. Ninguém aguenta mais esse silêncio estridente dos corredores. Longe de mim, portanto, ser contra discussões de qualquer tipo, em qualquer medida. Meu ponto é completamente outro. 

     Sou contra a picaretagem do voto em assembléia. É preciso acabar de vez com essa farsa, para a qual não existe mais nenhuma justificativa. Votações podem perfeitamente ser feitas ao longo de todo um final de semana em urnas eletrônicas, após uma deliberação cuidadosa dos pontos a serem decididos. Os argumentos contrários são ridiculamente frágeis, e escondem, na verdade, uma só coisa: a vontade que determinados grupos têm de colonizar os movimentos sociais. Por que a esquerda não pode inovar nesse ponto? Por que não apostar de fato na coletividade, ao invés de desconfiar dela? Por que entregar essa bandeira de graça ao outro lado? Por que não entusiasmar a Universidade com um discurso novo, ao invés de ficar grudada à simbologia caduca da década de 60? Por que não imitar a década de 60 naquilo que ela teve de melhor, que foi justamente a capacidade de não imitar ninguém?

    Inúmeras pessoas dentro da Universidade não reconhecem mais nenhuma legitimidade em decisões coletivas tomadas em assembléias. Esse é o nó da questão, que precisa ser enfrentado. Enquanto isso não acontecer, os piquetes - em si mesmos odiosos - estarão simplesmente ocupando com uma nota de violência o lugar dessa impressionante falta de originalidade que parece ter infestado toda uma geração.

A Esfinge

Ontem, um amigo me ofereceu uma interessante versão da História Imaginária do Grande Conflito.

Rodas e Alckmin, de comum acordo, teriam ordenado ao chefe da PM que enviasse soldados ao pátio História (por um triz não escrevo “Pátio da História”) para prender usuários de maconha escolhidos ao acaso. Acintosamente, numa clara provocação aos estudantes. Haveria, é óbvio, a reação que houve. O impasse seria criado, a Reitoria, invadida, a tropa de choque, chamada, e a mídia, fiel parceira, faria o restante do trabalhinho sujo. Os estudantes apareceriam como bandidos, encapuzados, enquanto Rodas e Alckmin posariam de mocinhos para os fotógrafos. Um plano perfeito, que infelizmente estaria dando certo


   A narrativa da Origem  agora, do outro lado.

     Partidos extremistas mancomunados teriam enviado dois agentes para fumar maconha nas fuças da polícia. Acintosamente, numa clara provocação. Haveria, é óbvio, a reação que houve. O impasse seria criado, a Reitoria, invadida, a tropa de choque, chamada, e uma greve de final de ano decidida a toque de caixa nas assembléias de praxe. O objetivo? Adiar as eleições para o DCE, diante da perspectiva de vitória de uma chapa de direita. Um plano perfeito, que infelizmente estaria dando certo.

     Harmoniosa especularidade.

     No nível dos fatos, verdades mixas. Fiapos fatuais. É óbvio que Rodas e Alckmin capitalizaram os incidentes posando de heróis. É óbvio que a esquerda capitalizou o episódio adiando as eleições para o DCE. Neste caso, porém, as verdades são menos interessantes que as mentiras. Reparem como o Inimigo é visto, dos dois lados, como uma espécie de “senhor de todos os destinos”, capaz de manipular a História a seu talante. Cada uma das partes se vê como personagem de um enredo um pouco mágico, urdido alhures, nas altas esferas (ou fundos subterrâneos) do Grande Mal.

     Esse embate de mitologias parece indicar que o nó da questão não está dado no nível dos fatos. Há uma guerra de símbolos em curso. Uma guerra de valores.

     O Reitor é um símbolo. A PM é um símbolo. Até mesmo a Aula é um símbolo.

     Símbolos de quê?

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Carta aberta aos alunos da FFLCH

Mais uma vez, como acontece quase todos os anos, minha aula foi interrompida na última segunda-feira (dia 21) por um grupo de estudantes que buscavam obter na marra uma unanimidade que não conseguiram alcançar por meio da argumentação e do convencimento. Nós todos, professores, funcionários e alunos desta Universidade, precisamos repensar o significado de episódios como esse. Estamos a um passo de presenciar cenas de pugilato entre alunos  há poucos dias, quase tivemos um desfecho desse tipo no prédio da Letras. Talvez seja hora de fazermos uma pausa e, sem abrir mão de nossas convicções pessoais, tentarmos chegar a um acordo a respeito de regras básicas que garantam uma convivência civilizada dentro da FFLCH.

A invasão de uma sala de aula (da mesma forma que um cadeiraço, um apitaço, e coisas do gênero) sempre envolve algum grau de violência. Não se trata, é claro, de violência desregrada ou desmedida. O que se nota nessas manifestações é uma observância estrita de certas regras e uma mensuração cuidadosa do grau de ruptura admissível em cada situação. Faz-se uma espécie de “cálculo”. Trata-se, em cada caso, de determinar o menor grau de violência física capaz de gerar um certo resultado. É essa a natureza do piquete, do cadeiraço, do apitaço, da invasão de sala.

É um cálculo de difícil visualização. Conforme o lugar de que o enxergamos, ele assume um aspecto diferente. Do ponto de vista de quem calcula, parece mais uma recusa da violência física do que um convite a ela. Afinal de contas, a preocupação maior do calculista é justamente chegar a um certo mínimo indispensável de meios físicos para a consecução de um certo fim. Trata-se, digamos assim, de guardar a maior distância possível de uma troca de socos. No entanto, se mudarmos nosso posto de observação e olharmos para esse cálculo no contexto do conflito em que ele se insere, a coisa muda de figura. Quando uma pessoa acredita ser razoável fazer essa contabilidade da violência, ela implicitamente autoriza seus oponentes a empregarem a mesma lógica. Os alunos que estão sendo vítimas do piquete podem ser levados a raciocinar da seguinte forma: “Os argumentos se esgotaram. É hora de utilizarmos outros meios. Uma troca de socos seria um incidente lamentável, a ser evitado a todo custo. Qual será, então, a dose mínima de violência física necessária para nos contrapormos a essas pessoas que invadiram as classes e interromperam as aulas? Tentemos expulsá-los no grito. Se isso não surtir efeito, refaremos nossos cálculos.”

As coisas se complicam ainda mais porque, vista do lado dos manifestantes, a mera permanência em classe de quem não aderiu à greve pode ser vista como uma violência  e violência física!  contra a decisão tomada pela maioria dos estudantes que votaram numa assembléia. O raciocínio é simples. “Se agem fisicamente ocupando classes que deveriam estar vazias, agiremos também fisicamente, interrompendo as aulas. Eles começaram o cálculo de violências possíveis. Nós só reagimos, efetuando a segunda operação desse cálculo.” Creio que existe aqui um equívoco a respeito do tipo de obrigação gerada por decisões de uma assembléia e também a respeito da legitimidade da violência praticada em nome dessas decisões. Mas existe também uma outra questão, talvez mais premente, na medida em que nos permite compreender as atitudes antagônicas dentro da comunidade acadêmica frente a certas modalidades de decisão coletiva.

Para boa parte dos estudantes, funcionários e professores, assembléias deixaram de ser mecanismos legítimos para a tomada coletiva de decisões. Muitos de nós convenceram-se de que as assembléias se transformaram, nos melhores casos, em mecanismos de manipulação ideológica, cuja única função é garantir a “hegemonia dos mobilizados”. Um professor ou aluno que entra em sala de aula contrariando decisões de uma assembléia não se sente de modo algum traindo a “vontade coletiva”, a “confiança dos colegas”, ou o que quer que seja. Sente que está simplesmente exercendo seu direito de ir e vir, pois não atribui nenhum valor às decisões tomadas pelos colegas. Essas pessoas não frequentam assembléias, não querem frequentá-las, e não acreditam que, deixando de frequentá-las, estejam dando a quem quer que seja o direito de decidir qualquer coisa em seu nome. Esse é o ponto. Não é este o espaço adequado para avaliar em profundidade essa crise de legitimidade das assembléias, mas é preciso reconhecer que ela existe, e é um dos inúmeros assuntos que precisam ser discutidos dentro da universidade. Há respostas que precisam deixar de ser dadas, e perguntas que precisam começar a ser feitas. Façamos pelo menos algumas. Uma assembléia virtual, conduzida na Internet ao longo de quatro ou cinco dias, seguida de uma votação eletrônica no final da semana não seria uma opção muito mais interessante do que assembléias presenciais de duas, três horas, a que poucos alunos e professores podem ou querem comparecer? A palavra escrita, no contexto de uma discussão coletiva, não teria um peso muito maior? Não haveria um ganho se retirássemos dos mecanismos coletivos de decisão o elemento intimidatório das vaias e dos aplausos? Não seria ótimo que pessoas mais tímidas, mas bem articuladas, pudessem dar contribuições relevantes ao debate? Não seria muito mais difícil que eventos desse tipo fossem manipulados por pequenos grupos políticos graças a um arsenal de espertezas muito bem conhecido por todos nós? (Não nos esqueçamos de que esta última invasão da Reitoria foi, sim, decidida pelo voto da maioria dos presentes numa assembléia. Eu lhes pergunto: numa assembléia virtual, uma decisão como aquela teria sido tomada? E, caso fosse tomada, mas com ampla participação dos alunos, ela não teria uma outra força? Não teria um outro sentido?)

Unida à crise de legitimidade das assembléias, a utilização de piquetes tem um efeito particularmente pernicioso. Eles se transformam pura e simplesmente numa agressão de um grupo contra outro, que não vê no primeiro nenhuma legitimidade para tomar uma atitude tão extrema. A situação fica reduzida a uma briga (a expressão é esta!) entre a “turma das assembléias” e a “turma que deseja assistir às aulas”. Até aqui, não houve reações violentas, mas elas estão a um passo de acontecer, pois a parte ofendida começa a sentir-se no direito de reagir como puder. É esse o desfecho a que queremos assistir?

É necessário que os defensores dos piquetes em sala de aula comecem a se pôr no lugar de quem está lá dentro. Imaginem-se do outro lado. Imaginem, por exemplo, que um grupo de alunos que não reconhecesse legitimidade nas assembléias resolvesse acabar com uma delas utilizando “a menor intensidade possível de violência física” — por exemplo, fazendo um apitaço que inviabilizasse a reunião. Quando uma pessoa fosse falar, seria interrompida por um coro de apitos e buzinas. A pessoa tentaria falar novamente, e o apitaço seria retomado. Os alunos presentes à assembléia reclamariam, xingariam, e os manifestantes voltariam a fazer silêncio, até que alguém tentasse retomar a palavra. Após quinze, vinte minutos sendo submetidos a essa violência mínima, como vocês, que defendem os piquetes em sala de aula, reagiriam? Como vocês se sentiriam? Acima de tudo  é nesta direção que devemos caminhar? É esse o horizonte que queremos abrir?

A discussão está tão envenenada, que me sinto obrigado neste ponto a transformar uma obviedade em ressalva. Nem me passa pela cabeça propor que se apliquem às assembléias os métodos violentos próprios dos piquetes. Isso seria a consumação da barbárie. Estou propondo exatamente o contrário disso. É preciso restituir à palavra o peso e a importância que ela deve ter, e não avançar no sentido de substituí-la por apitos e buzinas. É preciso, enfim, que todos nós façamos uma reflexão a respeito dos limites e das modalidades da ação política dentro do campus. O objetivo não é de maneira alguma bloquear o debate dentro da universidade, mas ampliá-lo, e dar a ele um novo sentido e uma nova força. A solução não está na década de 60, com seus livros sagrados e suas mitologias. O que foi grandioso naquela geração foi exatamente o fato de que eles tiveram a audácia de inventar seu próprio tempo. Por que não ousar um passo do mesmo tamanho? Por que se contentar com o triste papel reservado aos epígonos? Os problemas estão todos aí, intocados. O Brasil, apesar dos inegáveis avanços, continua sendo um país no qual a igualdade de oportunidades inexiste. No mundo todo, a democracia ameaça muitas vezes transformar-se numa cerimônia vazia, na qual o voto depositado na urna não tem nenhum sentido para além da escolha de Fulano, ao invés de Beltrano. No âmbito da universidade, precisamos sem dúvida discutir os problemas (e os limites) da representação e da legitimidade. Os problemas estão aí, por toda a parte, na universidade e fora dela. Eu só me pergunto se é necessário paralisar aulas para discuti-los (numa macaqueação um pouco ridícula das greves de trabalhadores) e, acima de tudo, se é legítimo utilizar a violência dos piquetes para garantir paralisações decididas em assembléias nas quais metade da comunidade acadêmica não enxerga nenhuma legitimidade. A idéia não é recuar para o conformismo, mas avançar para novas formas de legitimação, aceitando todos os riscos dessa caminhada. A idéia não é, enfim, esvaziar o debate na universidade, mas torná-lo mais amplo, mais profundo e mais legítimo.