Foi postada no Facebook uma carta aberta de autoria de ANDRÉ PAES LEME, em resposta à minha. Resolvi publicá-lo em destaque porque é muito bem articulado, e toca em aspectos fundamentais da questão.
O post imediatamente posterior contém a minha resposta.
Discordo de TUDO que o André está dizendo, conforme vocês verão. Mas não posso deixar de reconhecer a qualidade de seu texto e, acima de tudo, a coragem e honestidade intelectual que estão por trás de sua tecetura.
“Por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, até mesmo um comportamento assumido no exercício de um direito [DE GREVE] deve, sob determinadas circunstâncias, ser considerado [pelo Estado] uma violência.” (Walter Benjamin)
É assim que Benjamin caracteriza o exercício do direito de greve, concedido pelo Estado, porém caracterizado como arbitrário e violento, quando, por assim dizer, GENERALIZA-SE. O ensaio do autor ressalta o caráter transitório sobre o qual repousa qualquer direito que, em ato, possa vir a confrontar o ordenamento de direito que o promulga. Geralmente, nesses casos, o Estado - e seus apologetas - o classificam como VIOLÊNCIA. O contexto analisado por Benjamin remete à greve operária. Acreditamos, porém, que seus conceitos possam oferecer alguma luz para melhor visualizarmos situações tais como as greves estudantis.
Trata-se aqui de discutir algumas das implicações dessa caracterização feita por Benjamin no âmbito estrito da greve em curso dos estudantes da USP, mais especificamente, dos estudantes de FILOSOFIA. Propomos então uma reflexão sobre os últimos episódios ocorridos no depto. e as reações que acabaram desencadeando.
O professor João Vergílio acusa os estudantes de filosofia, em greve, de se utilizarem de violência, ou melhor, de um certo “cálculo” da violência, para interromperem suas aulas. Para isso, baseia-se no direito constituído que o garante ministrá-las e, aos demais estudantes, assisti-las. Diz ele: “Um professor ou aluno que entra em sala de aula contrariando decisões de uma assembleia [...] Sente que está simplesmente exercendo seu direito de ir e vir, pois não atribui nenhum valor às decisões tomadas pelos colegas.” É uma pena não haver espaço
aqui para analisar, com o necessário cuidado, a tendência notoriamente presente nos setores conservadores mais ligeiros, dos quais boa parte dos editoriais de mídia impressa e os programas televisivos de temática policial são um exemplo flagrante, de utilizarem-se do direito constitucional de ir e vir para operar a desqualificação de todo tipo de conflito social que se faça visível por meio de manifestações, passeatas, greves, etc... Mas, para além disso, já que o Profº raciocina no sentido de legitimar a ocorrência de suas aulas a partir do princípio da legalidade que defenderia tanto quem as ministra quanto quem as assiste, talvez fosse o caso de nos perguntarmos a que violência ele se refere. Segundo Freud: "É um erro de cálculo [seria esse o cálculo que o Profº nos atribui?] não considerar que o direito em sua origem foi VIOLÊNCIA BRUTA e que ainda hoje não pode prescindir do apoio da VIOLÊNCIA."
Isso significa que há uma permanente tensão que perpassa todo e qualquer ordenamento jurídico, isto é, a tensão entre direito e justiça. A ideia de justiça nunca se esgota em suas representações jurídicas e nas instituições de direito que a ela buscam se ajustar. Não pretendemos com essa constatação, no entanto, estabelecer um relativismo que autorize o uso indiscriminado da violência (de qualquer espécie), o que seria insensato. Reconhecemos que é impensável uma ideia de justiça que não incorra em um direito, em um estabelecimento da legalidade, em larga medida, que não se mova a partir de um Estado constituído. Mas não podemos deixar também de reconhecer, juntos de Jacques Derrida, por exemplo, que “aquilo que pretende ter força de lei inscreve, portanto, o apelo à força no próprio conceito de sua autoridade. O risco de tirania não espera mais, ele espreita na origem da lei”. Assim, pretendemos mostrar que, a contrapelo do que sustenta o profº João Vergílio, em sua enxurrada de textos dos últimos dias, a interrupção de aulas não
é um ato que caiba na oposição Violência X Direito (oposição largamente problemática), pois tratam-se ambos, grosso modo, de momentos distintos de um mesmo ato, sendo a violência a porta pela qual o direito se instala e, mais tarde, a arma pela qual ele se defende. Podemos inferir que a própria estrutura da sala de aula, amparada pela legalidade do direito, é um dos espaços, por excelência, para a ação livre da VIOLÊNCIA SIMBÓLICA imposta pela ordem constituída. A violência que constitui o direito persiste, mas de maneira velada. No correr de uma relação pedagógica professor e aluno podem não ser diretamente violentados por atos ou palavras, mas o background, os valores impressos no aprendizado e a primazia discursiva são de quem? A relação exercida é sim uma relação de poder em que o mais forte se impõe sobre o mais fraco, através de uma forma de violência, que, por não ser problematizada, cristaliza-se como um dado, um fato inevitável. Daí decorre que se afirme, contra um cadeiraço, que a sala de aula é o “lugar natural” das carteiras, ou que o “conhecimento” se cale na ausência de aulas. Concordamos que a sala de aula é sim o espaço das carteiras, mas a própria diagramação espacial dela é fruto de uma violência simbólica, ao menos, tanto quanto o ato de retirá-las da sala.
Gostaria também de ressaltar que as “ações grevistas” dos estudantes de Filosofia foram pautadas desde o início pelo diálogo e o respeito a professores e estudantes de posições contrárias e/ou indiferentes à greve. Assim, apenas ontem fora utilizado o cadeiraço como forma de interrupção das aulas (Um erro na opinião de quem aqui escreve, mas tem a clara percepção de que condená-lo a partir da exaltação do direito incorre em uma forma cínica de “fazer cumprir a lei”, a despeito da natureza política do conflito). Nossos piquetes tem
sido pautados pelo diálogo e pelo respeito a posição de professores e demais estudantes.
Trata-se da entrada (e não invasão, como diz o Profº João Vergílio) de um pequeno grupo de alunos em sala de aula, para a proposição de um debate sobre a situação política enfrentada pela universidade e para que seja reforçado o informe de que a Assembleia dos Estudantes de Filosofia deliberou por greve. Foi apenas isso o que ocorreu na aula de 21/11 e que tanto indignou o Profº João Vergílio. Talvez, tendo se sentido ameaçado pela ruptura do monopólio discursivo, prerrogativa sua em sala de aula, o Profº tenha se sentido vítima do que denominou: “uma violência mínima”. Cremos que haja uma diferença qualitativa entre um chamado ao debate, ou seja, o que foi feito durante a aula de 21/11 e a prática de cadeiraços e demais piquetes, que, apesar de válidos, são utilizados apenas quando se configura a impossiblidade de se levar adiante a discussão por conta de uma recusa docente, a qual, como sabemos, tem sim natureza política. Ainda que ambos (“discussão” e “piquete”) tenham a finalidade de interromper a atividade (aula) em curso, no primeiro caso, salta aos olhos um convite ao livre pensar, à reflexão para além das paredes da sala de aula, um verdadeiro convite à própria filosofia. O fato de o Profº João Vergílio ter se retirado bastante irritado, talvez mostre que, para ele, a filosofia tenha de contar sempre com a mediação das salas de aula para exercer seu papel crítico frente a realidade, não apenas da universidade, mas do mundo.
Dessa feita, se alguma violência fora cometida em sua aula, no dia 21/11, coisa com a qual não assentimos, fora aquela que Gilles Deleuze denominou, em um outro contexto, a violência do pensamento, isto é, o acontecimento que força a PENSAR.
No que concerne aos ataques, a nosso ver, preconceituosos e ideologicamente inclinados que o Profº desfere contra as assembleias, na ausência de espaços melhores e mais eficazes, o local de deliberação soberana dos estudantes de filosofia, só nos resta lamentar que, ao invés de comparecerem a elas e comprovarem como são um espaço aberto às mais diversas opiniões e tendências políticas, haja não apenas estudantes, mas professores que prefiram alimentar preconceitos de tal ordem. Rechaçamos a “incitação lúdica” que o Profº João Vergílio vem realizando em seus textos ao boicote às assembleias em geral, não apenas pela vileza que domina essa atitude, que visa, no limite, o esvaziamento dos poucos canais institucionais de discussão discente atualmente disponíveis, mas, sobretudo, pela irracionalidade do argumento. Haja vista que não faria o menor sentido trabalhar pelo impedimento de uma assembleia de curso que se encontra aberta para acatar a posição de todos (que o Profº prove não ser esse o caso da Assembleia dos Estudantes de Filosofia), inclusive dos que são contrários ao seu estabelecimento. Por outro lado, a nosso ver, trata-se de uma discussão delicada e importante a revisão de certos modelos de deliberação conjunta. Recebemos com atenção as indicações fornecidas pelo Profº a respeito da ampliação da possiblidade de discussão e voto, através da utilização de novos meios de interação, como a Internet. Acreditamos que essa discussão deva estar na ordem do dia do Movimento Estudantil para que ele se torne mais legítimo a cada dia. Não concordamos, contudo, que o modelo de assembleia atual incorra, no mais das vezes, em “pura manipulação ideológica”, como foi dito. Pelo contrário, ressaltamos que as deliberações de uma assembleia, como a dos estudantes de filosofia, cujo caráter é de DEMOCRACIA DIRETA E PARTICIPATIVA merece respeito mesmo da parte daqueles que, por princípio, a recusam. No mais, reforçamos o convite a todos os estudantes que, apesar de nunca terem frequentado as assembleias, afirmam não se sentirem representados pelas deliberações conjuntas, para que compareçam e colaborem na discussão sobre a greve que se encontra em curso e sobre os próximos passos do movimento, sobretudo, para o o fortalecimento de um debate acerca da remodelação das instâncias decisórias.